quarta-feira, 6 de outubro de 2021

(Ir)responsabilidade afetiva e paradoxo da escolha: um ensaio empírico

 


Certo dia, recordei-me da minha infância, particularmente do momento no qual ganhei meu tamagotchi. Talvez, você nunca tenha ouvido falar sobre eles, mas foram uma grande febre no final dos anos 1990 e se tratava de um brinquedo cujo objetivo era fazer as crianças cuidarem de animais de estimação virtuais. Exatamente isso. Você precisava alimentá-lo, dar banho, brincar com ele, colocá-lo para dormir... isso tudo passando por todas as etapas de sua vida: desde o nascimento até a sua morte. Claramente, quanto melhor fosse o cuidado, mais ele viveria. O meu tamagotchi era uma tartaruga. Como eu o amava! Ou a amava, afinal não me recordo qual era o gênero dele/dela, mas isso está longe de importar... lembro que minha tartaruga sempre vivia por muitos anos, pois eu cuidava dela como se fosse, de fato, um animal de verdade, sempre preocupado com suas necessidades fisiológicas (e emocionais).

Alguns bons anos se passaram e essa memória ressurgiu, custando-me a entender de onde esse déjà vu poderia ter emergido. E, então, minha recente experiência em aplicativos de paqueras/relacionamentos fez todo sentido: estava aí minha grande correlação, que traçou uma metáfora bastante inusitada. Ao nos dispormos a conhecer uma pessoa virtualmente nestes aplicativos, precisamos (ou deveríamos precisar) estar cientes e disponíveis a nutrir e a cuidar dos sentimentos que possivelmente podem surgir: o crush tem suas demandas de escuta, conversa, sente-se triste quando é esquecido... de igual forma aos tamagotchis, sem afeição, o sentimento no mundo virtual pode não se desenvolver e, eventualmente, morrer.

Apesar dos diversos paralelos que podem ser traçados, uma grande e crucial diferença não pode ser negligenciada: podemos ter vários tamagotchis, ops!, crushes, porém estes, sim, são dotados de sentimentos reais e genuínos. Entretanto, relações afetivas descartáveis parecem desconsiderar este detalhe, desprezando a responsabilidade afetiva e a empatia pelo/com o outro. É fundamental a compreensão de que, quando nos relacionamos com alguma pessoa, é inevitável criarmos expectativas e idealizações. Infelizmente, não temos controle sobre o mundo interior do outro e, às vezes, mesmo que a pessoa seja clara e sincera, a outra pode criar expectativas que jamais serão realizadas. Estes tópicos foram profundamente debatidos pelo cada-vez-mais-citado sociólogo e filósofo polonês, Zygmunt Bauman, que cunhou o queridinho termo “amores líquidos”. Que me julguem as más línguas, mas, embora eu não seja dos maiores fãs de Bauman, tenho que concordar com seu argumento de que as relações contemporâneas vêm se tornando cada vez mais "flexíveis", gerando níveis de insegurança e de insolidez sempre maiores.

Um dos mais famosos experimentos sobre psicologia do consumo, conhecido como “experimento da geleia”, datado de 1995 – curiosamente, um ano antes do lançamento dos tamagotchis... – concluiu que, ao se dispor de duas prateleiras, sendo uma com muitos potes de geleia e outra com uma quantidade bem inferior, aquela que atraia mais pessoas era, justamente, a que possuía maiores quantidades disponíveis, entretanto era a que tinha menos geleias a responsável pelas maiores vendas. Esse clássico experimento representa o “paradoxo da escolha”, traduzido na dificuldade de se tomar decisões quando se tem muitas possibilidades, devido às incertezas e à expectativa de sempre se obter uma melhor alternativa.

Como tal, alimentamos vários tamagotchis na expectativa de que o n-ésimo será melhor do que os já nutridos ou em processo de nutrição. Experimentamos e experienciamos o gato, o cachorro, o coelho, a tartaruga... o zoológico inteiro. Até que, finalmente, cansamo-nos. Muito tempo, energia, esperança, expectativa e sentimento foi despendido e iniciamos um processo conhecido como ghosting, termo usado para se referir ao término repentino de uma “relação” sem deixar explicações. Tornamo-nos mais desgastados e desgastamos os sentimentos alheios. Como em um ciclo vicioso, transformamo-nos, todos, em seres (um pouco) mais insensíveis, amargurados e não-empáticos. A irresponsabilidade afetiva jamais passa batida; contrariamente, deixa suas cicatrizes e traumas, podendo, muitas vezes, ser invisíveis na nova foto do perfil, mas sempre sentidas em cada novo date.


|Luan dos Santos|